CINEASTA CELEBRADA
Cristina Amaral, uma montadora da história do cinema brasileiro e ‘uma espécie de curadora do material fílmico’
Leticia Santinon e Mariana Queen Nwabasili, curadoras convidadas
“Acho que você tem que fazer um filme que estiver dentro do seu coração, um filme que estiver incomodando
as entranhas. É isso que o cinema tem que fazer. Mas, a expressão disso tem que vir carregada desse nosso
desejo de ser, dessa nossa história, e também, da história escondida. Você não precisa ser didático, não deve ser,
mas qualquer coisa que façamos deve vir carregada dessa responsabilidade”, Cristina Amaral, fala em mesa da
26ª Mostra de Cinema de Tiradentes
“A montagem é quando você bota a bola no chão e começa um jogo de novo, junto a todo o trabalho que veio anteriormente”¹. A frase de Cristina Amaral, cineasta celebrada na 6ª edição do Cabíria Festival Audiovisual, demonstra o quanto seu ofício como montadora implica em respeito e percepção complexa com relação às diferentes etapas da realização de um filme. A partir disso, o gesto em celebrá-la se alinha às demais instâncias curatoriais da programação desta edição, ao destacar que, para além da roteirização e da direção, cinema é um jogo que se joga junto, feito por várias mãos e corações para a construção de sentidos de uma obra artística.
Formada em Cinema pela Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo, Cristina teve como um de seus mentores o grande teórico do cinema brasileiro Paulo Emílio Sales Gomes. Desenvolveu projetos junto à amigos da ECA, montou alguns curtas e, ao buscar um estágio para o processo de trucagens e efeitos junto a alguma produtora de publicidade (eram as únicas que tinham condição financeira de utilizar esses recursos que, para o cinema eram muito caros) conhece o montador Umberto Martins e fica impressionada porque ele montava publicidade como se fosse cinema. Quando ele sai dessa produtora e fica trabalhando como free-lancer, a contrata como assistente. Foi nessa época que Raquel Gerber a convidou para fazer assistência de montagem no documentário ensaístico “Orí” (Raquel Gerber, 1989), cuja filmagem demorou 11 anos para ser feita e a montagem, três. Cristina costuma dizer que o convite para esse trabalho a salvou de ser contratada por uma produtora de publicidade, e que a montagem de anos lhe rendeu sua única experiência no cinema com férias remuneradas.
“Foi um processo de recuperação, de abrir tudo, olhar, até nós termos todas as imagens do filme nas mãos e começar a montá-lo. Passei por todo o material, então conhecia tudo”, conta em entrevista à curadora e crítica de cinema Lorenna Rocha²
A participação teve suas especificidades. Renato Neiva, que foi o montador de “Orí”, precisou se afastar por alguns meses e durante esse período ela assumiu a segunda unidade de montagem do documentário, que tem narração da historiadora, poetisa e militante negra Maria Beatriz Nascimento (1942-1995). A respeito do contato com Beatriz Nascimento por conta do filme, diz, no livro “Empoderadas – Narrativas Incontidas do audiovisual brasileiro” (2021), que foi uma experiência linda de convivência, “mesmo que esporádica”, e que a historiadora era “uma pessoa maravilhosa e única”.
O curta-metragem “Abá” (1991), dirigido pela amiga Raquel Gerber, foi realizado a partir do material filmado para “Orí”. “O crédito como diretora de ‘Abá’ foi um carinho da Raquel. O material usado nesse filme foi filmado por ela e não tinha sido utilizado no longa-metragem. Como a Raquel queria fazer um filme para levar de presente ao FESPACO [Festival Pan-Africana de Cinema e Televisão de Ouagadougou, em Burkina Fasso], fizemos esse filme-oração [“Abá”] que eu amo. Mas, nele, não fiz nada além do que faço em meus trabalhos de montagem”, diz a reconhecidamente modesta cineasta em entrevista para a curadora Mariana Queen Nwabasili.
Cristina Amaral é possivelmente uma das montadoras mais premiadas no país – ao longo de mais de 30 anos de carreira, foram ao menos oito prêmios de melhor montagem recebidos entre as décadas de 1980 e 2010, sendo três deles no Festival de Brasília. Ela jogou e continua a jogar junto com diferentes e expressivos cineastas do chamado Cinema de Invenção de ontem e de hoje, como Andrea Tonacci, Carlos Reichenbach, Raquel Gerber, Edgard Navarro, Paula Gaitán, Carlos Adriano, Thiago B. Mendonça, Eryk Rocha, Joana Pimenta, Adirley Queirós, Djin Sganzerla, Jô Serfaty e Juliana Rojas.
Sua vinculação com esse tipo de cinema na década de 1990 – em suas palavras, um cinema de inquietação, “rebeldia e desobediência”, de “desconstrução do chamado ‘cinema bem feito’” – a coloca não apenas em uma posição complexa quando pensamos nas estéticas e filiações artísticas de cineastas negros e cineastas mulheres, como também nos convida a reconhecer a contribuição da montadora à história do significativo movimento cinematográfico também conhecido como Cinema de Invenção.
As parcerias com realizadoras e realizadores de diferentes épocas e gerações demonstram seu frescor criativo, sua perene contemporaneidade e seu prestígio na área. “Tive duas perdas imensas. Mas foram essas duas perdas – o Carlos Reichenbach (1945-2012) e o Andrea Tonacci (1944-2016) – que me possibilitaram a aproximação de jovens realizadores que continuam esse cinema de rigor e risco. Aí você entende a roda da vida. Na verdade, eu não os perdi, porque eles estão aqui dentro, sempre junto de mim […]”³, afirma a cineasta.
A parceria com Carlos Reichenbach iniciou-se em “Alma Corsária” (filme de 1993, premiado no Festival de Brasília), e rendeu diversos filmes posteriores, como “Dois Córregos” (1999) e “Garotas do ABC” (2003). Com Andrea Tonacci, seu companheiro de vida, coordenou a produtora Extrema Produção Artística, e assinou a montagem de “Serras da Desordem” (2006), “Já visto, jamais visto” (2013), entre outros.
“Às vezes, recebo 120 ou 140 horas de material. É preciso se entregar a ele, ir junto, ver tudo, conviver com isso”⁴, diz a cineasta, demonstrando sua porosa sensibilidade na lida com o material bruto, primor que a rendeu a alcunha de “uma espécie de curadora do material fílmico”, segundo Raquel Gerber⁵. “O cinema me abre a mente, me abre a alma. O cinema me modifica. Cada filme, desses intensos que eu pego, eu saio diferente. Mais do que querer controlar os filmes, eu quero me transformar com eles”, relatou durante a 26ª Mostra de Cinema de Tiradentes.
Celebramos Cristina Amaral e sua coragem e ímpeto para fazer e pensar cinema de forma radicalmente livre, por meio da prática poética que a montagem possibilita e em diálogo com tudo o que vem antes e depois disso no processo de materialização de um filme no mundo.
¹ ROCHA, Lorenna. Abrir mão do controle, atravessar a imagem: uma conversa com Cristina Amaral | Dossiê #2 – Inventar coletividades, disputar o cinema: 26ª Mostra de Cinema de Tiradentes. Disponível em: https://camarescura.com/2023/07/01/cristina-amaral-entrevista-montagem-lorenna-rocha/.
² ROCHA, Lorenna. Abrir mão do controle, atravessar a imagem: uma conversa com Cristina Amaral | Dossiê #2 – Inventar coletividades, disputar o cinema: 26ª Mostra de Cinema de Tiradentes. Disponível em: https://camarescura.com/2023/07/01/cristina-amaral-entrevista-montagem-lorenna-rocha/.
³ AMARAL, Cristina. Orí e os desafios de instituir repertórios negros no cinema brasileiro. In: MARTINS, Renata (Org.). Empoderadas – Narrativas Incontidas do audiovisual brasileiro. São Paulo: Oralituras, 2021.
⁴ ROCHA, Lorenna. Abrir mão do controle, atravessar a imagem: uma conversa com Cristina Amaral | Dossiê #2 – Inventar
coletividades, disputar o cinema: 26ª Mostra de Cinema de Tiradentes. Disponível em:
https://camarescura.com/2023/07/01/cristina-amaral-entrevista-montagem-lorenna-rocha/.
⁵ Tudo no mundo africano é macumba – Entrevista com Raquel Gerber. Entrevista: Bernardo Oliveira, Ewerton Belico e Gustavo Maan Edição: Bernardo Oliveira e Ewerton Belico Colaboradores: Bernardo Oliveira, Ewerton Belico, Francis Vogner, Gustavo Maan e Lorenna Rocha. Transcrição: Francisco Vidal. Disponível em: https://multiplotcinema.com.br/2022/09/tudo-no-mundo-africano-e-macumba-entrevista-com-raquel-gerber/.
Adélia Sampaio marcou a história do cinema como a primeira mulher negra a dirigir um longa no Brasil. Entre suas produções, estão: “Denúncia vazia” (1979), “Amor Maldito” (1984) e “Scliar, a persistência da paisagem” (1991). Com o intuito de democratizar o acesso às suas obras, a diretora disponibilizou no YouTube alguns de seus filmes completos para que mais pessoas possam assisti-los de maneira gratuita. Revolução em forma de mulher.
A cineasta iniciou a sua carreira a partir de oficinas do projeto Vídeo nas Aldeias, sempre em estreita colaboração com o Coletivo de Cinema Mbyá-Guarani.
A partir da sua autoria, questiona através do cinema a colonialidade do pensamento no âmbito do saber e do ser, da política, economia, religião, gênero, sexualidade e etnicidade, reivindicando sua autonomia como sujeita histórica, que por meio da autoimagem exerce o poder da representatividade e do que se deseja mostrar.
A linguagem artística e cinematográfica de Patrícia Ferreira Pará Yxapy possibilita narrativas híbridas de potentes histórias, mostrando-nos filmes indissociáveis às práticas da vida cosmológica, questões de gênero e do feminismo comunitário, na criação de outros imaginários possíveis e um processo de ruptura ao revelar que fazer cinema é fazer-se em multiplicidade e segredos.
Desde os anos 80, a diretora se contrapõe ao tradicional, aposta em estratégias narrativas e ressignifica convenções de gênero. No panteão do cinema nacional, sua filmografia tem lugar único e se destaca por dar foco às diversas camadas que representam uma mulher, incluindo temáticas políticas e sociais comuns a todas as identidades de gênero. O seu cinema autoral foi essencial para abrir caminho para muitas outras cineastas brasileiras.
No que se tornaria um tema recorrente no seu trabalho, a violência sofrida por Lucia e muitos da sua geração durante a ditadura militar, quando a cineasta foi presa e torturada, é a força motriz de vários dos seus filmes. Não pela fetichização do heroísmo dos militantes, nem da violência com a qual os opositores ao sistema opressor eram tratados, mas por sua capacidade cinematográfica de honrar memórias, promover denúncias e trazer novas perspectivas históricas.
Sua experiência pessoal, sua consciência social e sua prática artística resultaram em filmes únicos e urgentes. A história política do país e do cinema brasileiro se fundem na cinematografia de Lucia Murat.
Vera de Figueiredo (1934 – 2024) foi uma diretora e autora conhecida pela trilogia feminista, iniciada com Feminino Plural (1976), filme que gira em torno de um grupo de mulheres com motocicletas e é pioneiro em abordar o feminismo no cinema brasileiro. Além disso, ela também dirigiu Samba da Criação do Mundo (1979), drama inspirado no enredo da Escola de Samba Beija-Flor para o Carnaval de 1978 e Amazônia Como Metáfora (1992), documentário que acompanha o desenvolvimento da consciência ecológica no Brasil durante o período de 1989-1992 por meio de colaboração coletiva. Todos os seus filmes sempre apresentam personagens femininas fortes e plurais.
A cineasta e artista visual Everlane Moraes é reconhecida por seu trabalho autoral, que mescla elementos estéticos da ficção com a linguagem do documentário, Everlane é diretora de filmes que transitam por diversos gêneros e formatos, explorando as questões sociais, filosóficas e espirituais relacionadas à diáspora negra.
Cristina Amaral, uma montadora que atravessa e constrói a história do cinema brasileiro de forma irreverente e complexa, como ‘uma curadora do material fílmico’.
Há décadas, Cristina conta histórias a partir de seu encontro com materiais brutos, trabalhando com diversos realizadores em parcerias duradouras que marcaram o cinema nacional. O Cinema de Invenção com o qual a expoente montadora se vinculou reflete um cinema de inquietação, rebeldia e desobediência em sua numerosa filmografia.