6ª edição

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Curadoria

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Abrir os roteiros das histórias

Leticia Santinon e Mariana Queen Nwbasili, curadoras convidadas

“Somos um país estranho. Porque temos de cavucar para conseguir enxergar quem somos. Um país que ao mesmo tempo
esconde sua história e massacra as suas culturas originárias – basta olhar para a questão dos índios e dos negros. São
histórias que a gente não estuda. Nós estudamos a distorção, os floreios dessa história. Temos o abafamento de expressões
culturais, e é muito sério. E no cinema, de alguma forma, temos que recuperar isso”, Cristina Amaral. 1

O cinema está sendo muito formatado […] Esses fundos de patrocínio e consultorias de roteiro dão impressão que os projetos são todos iguais. Isso torna mais difícil que os filmes mexam conosco ou tragam algum tipo de impacto”, Cristina Amaral. 2

A curadoria da 6ª edição do Cabíria Festival Audiovisual propõe um olhar e um incentivo à liberdade para abrir os roteiros das histórias, sejam elas ficções, biografias ou as histórias dos povos e das nações construídas como oficiais. Assim, desafia a naturalização do autoritarismo de conduções narrativas esquemáticas nas roteirizações de filmes e para além delas.

Os filmes programados em sala de cinema – cinco longas, dois médias e 15 curtas-metragens distribuídos em oito sessões – questionam se, de fato, o presente superou perspectivas ditatoriais e colonialistas. Ao serem aproximados, sugerem leituras sobre o imperialismo e o capitalismo contemporâneos como novas faces e fases dos processos de colonização, ou seja, colocam em perspectiva histórica e crítica a noção de colonialidade que atualmente tem sido esvaziada em sua radicalidade conceitual e analítica. Assim, a programação propõe relações existentes, e não comumente feitas no cinema, entre colonialismos, ditaduras – lembremos de nossa triste efeméride de 60 anos do Golpe Militar no Brasil –, imperialismos e colonialidades na América Latina, em África e no Oriente Médio. 3

Os filmes escolhidos borram as fronteiras da ficção e do documentário, friccionando nossas ideias e conceitos sobre formas e gêneros narrativos. São obras que desafiam a lógica de roteiros que espelham manuais e da História como nos foi oficialmente contada. Afinal, concordamos – longe de essencialismos – com o que escrevem as professoras e pesquisadoras Alcilene Cavalcante e Karla Holanda ao refletirem sobre as experimentações de mulheres no cinema ao longo da história: “Ao que parece, a expressão feminista se sente mais confortável longe dos paradigmas clássicos. O que essas diretoras [Maya Deren; Agnés Varda] parecem dizer é que diante dos valores de dominação masculina da sociedade, o cinema deve transcender a percepção do espaço, do tempo e até da própria dimensão de si”.

A curadoria também buscou destacar a montagem, junto e para além da roteirização e da direção, como elemento criativo fundamental para o cinema. Percepção que parte dos filmes programados e irradia para a cineasta celebrada nesta edição: Cristina Amaral, montadora que atravessa e constrói a história do cinema brasileiro de forma irreverente e complexa. 

Há décadas, a magistral Cristina Amaral conta histórias a partir de seu encontro com materiais brutos, trabalhando com diversos realizadores em parcerias duradouras que marcaram o cinema brasileiro. O Cinema de Invenção com o qual Cristina Amaral se vinculou influencia a concepção curatorial em termos estéticos, políticos e históricos. Afinal, nas palavras da própria cineasta, “fazer cinema não é ficar contando historinha, não é ficar correndo atrás do Oscar, não é ficar pensando ‘ah, a bilheteria’ […] O que a gente está produzindo não são filmes. Nós estamos produzindo os documentos visuais do nosso tempo, do nosso país. Isso é muito mais sério […]”. 

Uma programação que traz histórias e visões político-artísticas que, sim, o nosso cinema ousa contar e destacar devidamente.

 

¹ AMARAL, Cristina. Orí e os desafios de instituir repertórios negros no cinema brasileiro. In: MARTINS, Renata (Org.). Empoderadas – Narrativas Incontidas do audiovisual brasileiro. São Paulo: Oralituras, 2021. 

² ROCHA, Lorenna. Abrir mão do controle, atravessar a imagem: uma conversa com Cristina Amaral | Dossiê #2 – Inventar coletividades, disputar o cinema: 26ª Mostra de Cinema de Tiradentes. Disponível em: https://camarescura.com/2023/07/01/cristina-amaral-entrevista-montagem-lorenna-rocha.

 ³ OLIVEIRA, Alcilene Cavalcante; HOLANDA, Karla. Feminino Plural: história, gênero e cinema no Brasil dos anos 1970. In: Bragança, Maurício; TEDESCO. Marina. (Org.). Corpos em projeção: gênero e sexualidade no cinema latino-americano. Rio de Janeiro: 7 Letras, 2013, p. 134-15

Leticia Santinon

Distribuidora, pesquisadora, curadora e programadora audiovisual. Mestre em Comunicação pela Universidade Federal do Recôncavo (UFRB) com a pesquisa sobre a circulação de Sarah Maldoror no Brasil. Em 2023 fundou a Cajuína Audiovisual, distribuidora sediada em Salvador, Bahia, com foco em distribuição de impacto.

Foto por: Amanda Eyer

Foto por: Liz Dórea

Mariana Queen Nwabasili

Jornalista e pesquisadora, doutoranda e mestra em Meios e Processos Audiovisuais pela Escola de Comunicações e Artes da USP. Mestra em Curadoria Cinematográfica pela Elías Querejeta Zine Eskola, na Espanha. Participou da 10ª edição do Critics Academy do Festival de Cinema de Locarno, em 2021. Pesquisa autorias, representações e recepções cinematográficas vinculadas a raça, gênero, classe, colonialismo e (de)colonialidade, sobretudo no cinema brasileiro.